Leia enquanto ainda pode

Deixa eu te contar uma coisa: não podemos mais pensar. Quem disse que penso, logo, existo, não tinha a menor ideia da merda que estava falando.

Minhas mãos estão ensanguentadas. O sangue é meu. E na palma da minha mão, seguro um pequeno fio com um chip minúsculo na ponta.

Eles sabem de tudo. Eles sempre souberam de tudo. A merda toda começou com vazamentos acidentais de informações, quando eles descobriram que podia influenciar os humores das pessoas apenas escolhendo que tipo de notícia e imagens elas veriam por um certo período de tempo. E quem dava a informação toda era a gente, na maior inocência de quem vive numa bolha que não corre o menor risco de estourar.

Daí vazaram informações de mais de cinquenta milhões de pessoas. Dizem que aquilo mudou o resultado das eleições, porque o sistema aprendeu o que fazer para influenciar decisões de pessoas. O mundo ficou perplexo, mas depois foram esquecendo, como sempre acontece. Todo mundo dentro da maldita bolha.

Quando abriram ao mundo a história do projeto Neuralink, todo mundo achou o máximo. “É do cara que mandou um carro pro espaço, porra. Isso é genial”. E era genial mesmo, a gente só não sabia pra quem.

Não demorou para o implante chegar nas redes públicas de saúde. Eu nunca vi uma coisa chegar tão rápido e ser tão eficiente no sistema público de saúde. Mas tava todo mundo feliz, porque tava tudo ali ó, na palma da mão.

Quer comprar um refrigerante? Você instantaneamente sabia pra onde ir pra comprar o mais barato. Quer a comida mais gostosa? Que coincidência, por acaso esse lugar é do lado da minha casa!

As pessoas estavam felizes. Extasiadas. Não tinham mais que pensar para fazer porra nenhuma. Não precisavam escolher. Elas não pensavam. Existiam.

Mas até aí ninguém sabia. Ninguém sabia que no começo era só um teste.

Propagandas políticas passavam na TV. De repente aquele malandro de terno parecia um conhecido seu, alguém elegante e bondoso. Alguém que você conhece e sabe que é gente boa. Mas no dia seguinte você não podia suportar o cara na TV.

Passei do lado de uma loja de televisores uma vez, onde um grupo de três pessoas arrebentou a vitrine e arrancou os aparelhos de lá. Eles socavam a tela sem se importar com os cortes nos nós dos dedos. Eles nem viam o sangue. No dia seguinte eu vi os três dentro da loja, vendendo os mesmos modelos de televisores.

Uma noite eu acordei com dor de cabeça, e meus olhos se mexiam depressa. Eu não parava de piscar. Acho que tive uma convulsão, sei lá. Mas de repente eu vi tudo.

Meus pais não tinham expressão nenhuma. Eu os chamei pelo nome e eles nem olharam  pra mim. Olhavam pra TV. Estava ligada na campanha eleitoral e eles olhavam pra tela balançando a cabeça enquanto o cara de terno falava baboseira sobre transporte público.

Meus pais não eram mais humanos, e eu entrei em pânico quando constatei isso. E quando saí de casa, vi que o mundo inteiro estava assim. Pela rua, eram todos sorrisos e cumprimentos, frases prontas de partido político pra lá e pra cá.

Fiquei 3 dias no quarto, com minha cabeça doendo, pensando em como tinha feito o implante. O fio era fino como um fio de cabelo, não dava pra saber qual era o do implante. Acreditem, eu tentei.

Arranquei fios e mais fios de cabelo. Comecei a arrancar tufos e olhava as pontas para ver se eram bulbo capilar ou chip.

Minha cabeça sangrou. Eu gritei e chorei, mas meu pais não vieram me ver. Já não eram meus pais.

Eu arranquei quase tudo. Tinha cabelo no chão, nas minhas pernas, grudados no meu rosto. Mas eu encontrei o filho da puta. Um fio minúsculo. Puxei com toda a minha força, e era como se estivesse tentando espremer meu cérebro por aquele minúsculo buraco.

Minhas mãos estão ensanguentadas. O sangue é meu. E na palma da minha mão, seguro um pequeno fio com um chip minúsculo na ponta.

Eu chorei, porque eu consegui. Eu choro agora, porque penso, logo, sou livre. Eu choro agora porque eu sei.

Eu sei que eles estão vindo me buscar.

Nerd: Beatriz Napoli

Devoradora de livros, publicitária apaixonada, tem dois pés esquerdos e furtividade 0 para assaltar a geladeira de madrugada. Se apaixona por personagens fictícios com muita facilidade, mas não tem dinheiro para pagar o psiquiatra que obviamente precisa.

Share This Post On