Contos do posto de gasolina | Parte 5 de 8

Devo começar dizendo que realmente sinto muito por todos que leram a parte 4. Não tinha ideia do que ia acontecer. Os agentes me garantiram que todo e qualquer traço da história foi removido da internet e que não há nada para se preocupar.

Caso você tenha tido o azar de ler a parte 4: eu imploro, para seu próprio bem, tente esquecer. Caso seu nariz comece a sangrar, sinta tonturas, dores de cabeça ou alucinações, vá imediatamente para um pronto socorro. Se você estiver tendo um sonho recorrente com uma ilha feita de música, não se aproxime ou tente abrir a porta azul com um desenho de corvo sob nenhuma circunstância.

Caso você não tenha lido a parte 4: não tem nenhuma parte 4. Ela não existe. Esqueça isso.

A essa altura, você provavelmente já sabe que existe um posto de gasolina de merda no limite da nossa cidadezinha e que coisas estranhas tem acontecido por aqui. A Câmara Municipal me pediu pessoalmente para parar de falar sobre isso, já que alguns leitores astutos conseguiram não só encontrar nossa cidade somente pelas descrições que dei sobre ela, mas também vieram me visitar no trabalho. Ouvi dizer que um deles se juntou aos Matemáticos e, até onde sei, outros dois ainda estão desaparecidos. Mais uma vez, desculpe.

Não estou no trabalho agora. É minha primeira folga de verdade desde que comecei a escrever minhas histórias atrás de um recibo. O tempo passa de um jeito curioso aqui. Passa rápido e devagar ao mesmo tempo, como melado saindo de um revólver. Estar escrevendo minhas histórias em um diário tem sido uma coisa boa. Tenho um tempo antes da bateria do meu notebook acabar e decidi que agora é uma boa hora para começar a digitar as minhas histórias. É só uma questão de tempo saber o que vai acontecer primeiro: minha bateria acabar ou eu desmaiar por perda de sangue.

Antes que se preocupem, já liguei para o Tom. Ele disse que já está vindo para me levar para o hospital, assim que levar o jantar dos órfãos do Ledford, John-Ben e Irmãzinha. Tom e os outros oficiais têm revezado em dar uma olhada neles e levar comida em uma tentativa de tornar as coisas menos trágicas. Eles têm morado sozinhos desde o incidente que não aconteceu (e qualquer um que diga o contrário é um mentiroso desgraçado).

E lá vou eu de novo, desviando de assunto. Vou começar logo e digitar as histórias enquanto ainda posso.

02/11/17

21:00

Muita coisa aconteceu aqui desde o incidente de Halloween que não podemos falar sobre. Ando muito mais ocupado que o normal, lidando com as consequências e com os cultistas. Os Matemáticos têm comprado muitas coisas por aqui, planejando algum tipo de evento secreto que só consigo saber alguma coisa sobre por meio de murmúrios e sussurros.

Tem anoitecido cedo e o clima está ficando mais gelado.

03/11/17

2:00 da manhã

O homem de sobretudo voltou. Ele está parado do lado de fora do posto, olhando para dentro. Está ali a mais ou menos uma hora. O lado positivo disso é que ninguém entrou na loja desde que ele apareceu. O lado não tão positivo é que acho que ele está tentando colocar pensamentos na minha cabeça. Mas não vai conseguir, já tive muita prática com isso.

Kieffer veio cedo hoje, antes do sol se por, e sentou em uma cabine por um tempo, bebendo café. Até que Spencer Middleton chegou. Spencer e Kieffer conversaram um pouco, então veio correndo até o caixa, gritando a plenos pulmões. Pegou os bilhetes de loteria e jogou do outro lado da sala. Era óbvio que algo o tinha deixado irritado. Foi quando tirei os tampões de ouvido.

– Está tudo bem? – perguntei de forma estúpida. Sabia muito bem que tudo não estava tudo bem.

– Você ouviu alguma coisa do que acabei de falar? – perguntou Spencer.

Expliquei que estava usando tampões como uma tentativa de abafar os sons de gritos que às vezes ecoavam pelos dutos de ventilação. Acho que os gritos devem ter parado havia algum tempo, ou talvez eu tenha os imaginado. De qualquer forma, não precisava mais dos tampões.

Nesse momento, Tom entrou na loja. Seu cabelo branco parecendo ainda mais branco que o normal.

Pude ver que Spender ficou incomodado com a presença dele instantaneamente.

– Onde ele está? – Perguntou, meio sussurrando, meio rosnando. – Onde está o outro?

– Carlos? – Perguntei.

Spencer suspirou.

– Claro. Carlos.

– Seu próximo turno só começa em vinte minutos.

– Quando ele chegar, diga que precisamos ter uma conversa. – E assim, Spencer Middleton deu um assobio estridente e saiu da loja. Kieffer saiu de onde estava sentado e foi logo atrás.

Tom me ajudou a arrumar a bagunça e colocar os bilhetes de loteria de volta no lugar sem perguntar nada. Gostaria que mais pessoas fossem como Tom.

Quando Carlos chegou, disse que estava tendo sonhos estranhos. Sonhos com algo enorme, vivo, respirando, embaixo da terra. Os sonhos sempre terminavam do mesmo jeito: com o posto de gasolina afundando em um grande buraco. Falei que Spencer estava procurando por ele. Foi quando Carlos ficou sério e me perguntou se poderia me mostrar uma coisa.

No freezer, atrás das caixas etiquetadas como “non aprire” (seja lá o que aquilo significasse, estavam lá desde que comecei a trabalhar aqui), havia um cobertor se mexendo. E dentro desse cobertor havia outro Kieffer.

Minha primeira pergunta para Carlos foi:

– Você roubou o corpo de volta?

Ele olhou para o chão e negou veementemente com a cabeça, como se fosse um bebê que havia acabado de ser pego por fazer metanfetamina.

– Você matou outro?! – Perguntei.

Carlos explicou: tinha sido um acidente. De novo.

3:00 da manhã

O homem de sobretudo finalmente foi embora. Ele deixou marcas de garras no vidro da porta de entrada. Chequei as câmeras de segurança para confirmar minhas suspeitas. Ele sempre fica fora do alcance das câmeras. Por que não consigo me lembrar de como é o seu rosto?

3:30 da manhã

Marlboro foi nosso primeiro “cliente” na loja depois que o homem de sobretudo foi embora. Falei que estava surpreso em ainda vê-lo vivo. Ele confundiu isso com um elogio e agradeceu. Perguntei se estava pronto para o grande evento, mas ele só me encarou inexpressivamente. Era óbvio que ele não tinha a menor ideia do que eu estava falando, então o atualizei sobre como eu já sabia de tudo. A atividade cultista incomum, os sussurros, as compras de todo o nosso estoque… Eu sabia que algo estava para acontecer.

Marlboro foi ficando pálido conforme eu falava, então correu para fora antes que eu pudesse terminar, o frozen de 99 centavos ainda em suas mãos. Sei que deveria criar um inventário das coisas levadas, mas nunca faço. Por mais difícil de explicar que seja, tem alguma coisa sobre o Marlboro que me faz ter genuinamente pena dele.  

6:00 da manhã

Me peguei cavando de novo. Não sei por quanto tempo fiquei lá fora ou quem estava cuidando da loja para mim. O buraco está tão fundo agora que quase não consegui escalar para fora dele. Deveria começar a considerar a possibilidade de um dia perguntar para um médico se isso é normal.

8:00 da manhã

Marlboro está atualmente chorando em um armário. Por causa de seus soluços, quase não consegui entender a história. Marlboro foi enviado em algum tipo de “busca” na semana anterior e não tinha ideia para o que os outros cultistas estavam estocando suprimentos. Quando voltou para o acampamento hoje mais cedo, encontrou o lugar todo deserto. Camas foram deixadas desfeitas, alguns pratos com comida neles, a fogueira ainda acesa. As roupas de todos ainda estavam nas caixas de leite perto de seus sacos de dormir. Mas as pessoas – todas as pessoas – haviam simplesmente desaparecido.

Marlboro não está lidando muito bem com isso, mas tenho trabalho, então pedi para que Carlos me ajudasse a carregá-lo até o armário. Imagino que ele consiga lidar com seus sentimentos lá e talvez depois que ele terminar ele possa… Não sei… Ir para casa?

04/11/17

21:00

Os exterminadores acabaram de sair. Disseram que pegaram todas as cobras dessa vez, mas eu duvido.

05/11/17

17:00

Kieffer veio na loja hoje de novo e fez algumas ameaças sutis. Perguntou sobre Carlos também, mas disse que eu estava cansado de ser o intermediador deles e que se ele quisesse fazer negócios com o Carlos, precisava conversar com o Carlos. Foi quando Kieffer começou a ficar esquisito.

– Você sabia que esse lugar é só um grande experimento e que você não passa de um ratinho?

Pedi para que Kieffer comprasse algo ou saísse, então ele comprou um tubo de creme dental e começou a despir-se na loja e esfregar a pasta em seu corpo nu.

– Eles me dizem que tem alguma coisa errada com o seu cérebro. É verdade?

Tentei ser educado e evitar contato visual enquanto confirmava.

– Você tem algum tipo de problema mental?

Confirmei novamente.

– É uma pena.

A essa altura, Kieffer estava completamente nu. Foi até a máquina de raspadinha e encheu um copo grande com o vermelho açucarado antes de virar tudo em sua cabeça. Então, balançou-se violentamente como se fosse um cachorro molhado, jogando pedaços de gelo pegajosos para todos os lados. Alguns até mesmo em meu rosto, mas tentei não deixa-lo notar minha perplexidade. Sabia que tudo não passava de uma tentativa de me intimidar e não daria essa satisfação para ele.

– O que é exatamente? – Ele perguntou enquanto seguia em direção ao local onde deixara suas roupas empilhadas.

– O quê? – Perguntei.

– Qual é o seu problema? Esquizofrenia? Protanopia? Meninguite? O gay?

– Não. – Respondi. – Eu não durmo.

– Você não dorme? – Ele soou genuinamente interessado. – Tipo, nunca?

– Não consigo dormer. Não durmo um dia sequer desde o ensino médio. É uma condição genética rara sem cura e nem tratamento e, um dia, isso vai me matar. Mas, até lá, lido com os efeitos o máximo que posso.

Kieffer assentiu.

– Deve ser isso. Deve ser por isso que eles não conseguem chegar até você.

– Porque quem não consegue chegar até mim?

Foi então que Spencer entrou na loja. Ele jogou um cobertor em volta de Kieffer e levou até a SUV que os esperava. Um segundo depois, voltou para dentro da loja e me ofereceu US$100 pela fita de segurança daquela noite. Fico pensando o que vou fazendo com esse dinheiro.

21:00

Estava começando a desconfiar que alguma coisa não estava certa na loja. Tenho encontrado embalagens de barras de chocolate jogadas pelo chão, vídeos de segurança misteriosamente deletados, barulhos estranhos vindos das paredes no meio da noite quando eu deveria estar sozinho. Pelo menos, barulhos mais estranhos que os normais. A princípio, achei que era somente os guaxinins.

Mas agora sei da verdade. Agora sei que Marlboro tem estado aqui há dois dias. Ele acabou de sair andando do depósito vestindo um roupão, assentiu para mim enquanto pegava uma tira de carne seca e foi para o banheiro. Nunca me passou pela cabeça que Marlboro não foi embora.

06/11/17

4:00 da manhã

Finalmente aconteceu. Acho que era só uma questão de tempo. Sei que deveria me sentir arrependido, ou culpado, ou qualquer outro sentimento que as pessoas normais sentem depois que uma coisa dessas acontece, mas só me sinto envergonhado.

Voltei algumas horas atrás com uma pá em minhas mãos. Estava cavando de novo e, dessa vez, havia feito um bom progresso. O buraco já tinha pelo menos uns 2 m de profundidade, as paredes íngremes feitas de argila vermelha. Levou um tempo para que percebesse que estava encarando o céu escuro da noite repleto de incontáveis estrelas. Quando os celestiais maiores começaram a se mover foi que percebi que aquelas estrelas na verdade eram somente olhos vermelhos e sem alma dos guaxinins mutantes me encarando no fundo do buraco. Provavelmente procurando por comida, aqueles mendigos sem vergonha. Joguei a pá para fora do buraco e foi quando ouvi.

Imagine o som de uma faca de açougueiro acertando uma melancia. Como uma bordoada sólida, seca. Agora imagine a melancia gorgolejando e caindo sobre um saco de batatas. Ai, cara, essa metáfora realmente foi demais para mim…

Quando escalei para fora do buraco, vi que a pá estava parada em pé: estava firmemente alojada dentro do peito aberto machucado de um ainda espasmódico Kieffer.

O Kieffer estava morto antes que eu o trouxesse para dentro. Em um ato final desafiador, mostrou os dois dedos do meio para mim. Apenas senti um pouco de respeito por ele antes que meu estado mental chegado ao que só consigo descrever como “pânico moderado”. A primeira coisa que quis fazer foi encontrar algo para embrulhar o corpo, porque certamente Spencer Middleton viria atrás dele em breve.

Quando entrei na loja de conveniência, fiquei surpreso em descobrir que Marlboro estava tomando conta do caixa enquanto eu estava fora. Ele estava circundando um dos nossos clientes habituais, Charles, um homem muito gordo que sempre compra sabonetes e amendoim cozido.

Peguei uma lona de uma prateleira e levei para fora. Foi quando descobri algo: Kieffer era pesado. Tipo, muito pesado. Entendo que um corpo humano é basicamente um balão de carne e água cheio de gás e excremento, mas nada poderia me preparar para o quanto o corpo de um homem morto era pesado e nojento e como poderia vazar tantas coisas dele. Foi um milagre eu conseguir arrastar o corpo de Kieffer pela porta dos fundos e para dentro do freezer sem ser visto. Usei todas as minhas forças para empurrar toda aquela massa para trás das caixas e empilhá-lo sobre os outros três corpos. Quando finalmente terminei, estava suando e mesmo o ar frio do freezer não conseguia me acalmar. Enquanto fiquei ali, esperando minha respiração normalizar e a adrenalina se dissipar, percebi o que havia acontecido. Foi quando caiu minha ficha. Havia quatro Kieffers no freezer comigo. Quatro. Kieffer. De onde havia saído os outros dois?

A porta do freezer abriu e Marlboro entrou, trazendo um Kieffer morto pelas pernas. Parou e nos entreolhamos.

Quando viu os Kieffer aos meus pés, eu disse a única coisa que me ocorre:

– Isso é muito esquisito.

Marlboro e eu decidimos abrir uma garrafa de licor Strega e tomar alguns goles. Ele explicou que havia acidentalmente matado Kieffer algumas vezes. Eu entendi totalmente. O cara simplesmente era fácil de matar. Em um certo momento, Carlos veio até o freezer pegar uma caixa de massa para cookies. Ele nem sequer percebeu todos os Kieffers.

A bateria do meu notebook já está em 2%. Está claro agora que eu não terei tempo suficiente para transcrever o resto da minha história antes de morrer. Não vou ter tempo de contar como acabei no fundo do buraco embaixo da loja com uma perna quebrada. Mas posso dizer que ouvi alguém se movendo acima de mim, o que é bom porque não acho que estou sozinho aqui.

Se você está lendo isso, significa que consegui publicar minha história. Se você não está lendo isso, então… Não sei, o que você é?

Alguém acabou de chamar pelo meu nome da beira do precipício. Acho que é Carlos. Me pergunto o que aconteceu com Tom. Por que Tom nunca apareceu?

Pensando bem, parece que me lembro de Tom não sobreviver ao incidente de Halloween. Espere, com quem tenho falado esse tempo todo?

Prometo que, se eu sobreviver tempo suficiente para carregar a bateria do meu computador, voltarei e contarei o resto. Por enquanto, acho que essa história  vai ter uma continuação.

Nerd: Nathalia Lossolli

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