Wild Cards | Uma crítica selvagem

Começo esta crítica atestando que Game of Thrones é a obra máxima do George R.R. Martin. Creio que neste ponto não há dúvidas. Certo, e Cartas Selvagens? Se em poucas palavras eu pudesse descrevê-lo, em conjunto com A Morte da Luz, ambos foram um ótimo treino para chegar na sua obra máxima. Como assim?

 

Wild Cards me chamou a atenção por sua proposta inusitada: não é um livro escrito pelo nosso amado barbudo, mas sim uma coletânea de contos de diferentes autores que compartilham um mesmo universo, e a ele cabe o papel principal de editor, mesmo participando como escritor. Eu simplesmente amei o conceito do livro que, claro, lembra a fórmula do clássico RPG de mesa, porém criado por um grupo de escritores de ficção científica. Basicamente, um cenário de RPG de Super-Heróis preenchido com diferentes histórias. Na prática, como funciona?

 

A sinopse segue a linha clássica de qualquer quadrinho: no fim da segunda guerra mundial, em 1946, um vírus alienígena é trazido para nosso planeta pelos Takisianos, do Planeta Takis, fruto de uma briga de classes e com objetivo experimental. Apenas um deles, o Dr. Tachyon, geneticista, vem para tentar ajudar, mas falha em deter o vírus. Este então é liberado – adivinhem – em Nova Iorque. O vírus reescreve brutalmente o DNA humano, criando três cenários: em um, você morre dolorosamente. Em outro, seu corpo irá carregar pra sempre deformidades físicas e mentais. E, no terceiro e mais raro, você ganha super poderes. Daí “curingas” para os azarados e “ases” para os sortudos, como se para 1% dos infectados de ebola alguém saísse voando por causa do vírus. Por causa desse efeito aleatório e agressivo, o nome do livro é o nome do vírus: Cartas Selvagens.

 

As semelhanças com quadrinhos param por aqui. Qual é a expectativa em torno de um livro sobre super-heróis? Lutas épicas, vilões excêntricos, planos malignos e heróis carismáticos. Não tem nada disso aqui. A linha conceitual do livro é mais próxima de Watchmen – cenário realista – e aí vemos os germes que no futuro fizeram nascer Game of Thrones. Diversos autores trazem a perspectiva de muitos personagens e por meio de um mosaico não tão coeso mostrar o impacto histórico, político e social que seria um mundo com super-seres. As vezes esse objetivo é alcançado, em outros, não.

 

Primeiro, é muito claro a diferença de habilidade literária entre alguns autores. De longe os melhores capítulos são de Martin, mas outros também brilham, e alguns trazem ideias confusas e narrativas medianas em comparação com as outras. É difícil imprimir um ritmo com vozes tão diferentes, afinal não é apenas um livro de contos, e nem sempre aquele universo evolui como você espera. Alguns personagens são memoráveis, a começar pelo Dr. Tachyon, Gloden Boy e O Grande e Poderoso Tartaruga. Um deles, Fortunato, extrai seus poderes do sexo tântrico, uma afronta ao mundo puritano da Marvel e DC. A única coerência narrativa que existe é uma espécie de linha temporal que ordena as histórias: no primeiro livro vemos 30 anos desde o dia zero da liberação do vírus e existem interlúdios que, por meio de editoriais de jornais e artigos fictícios, posicionam o leitor na história. E diversos elementos mantém conexão entre os diferentes personagens e suas histórias pessoais.

 

Outro enorme ponto positivo são, de novo, os personagens, como os já citados. Dá pra sentir o esforço dos autores em fugir do estereótipo comum dos quadrinhos. Não há Clark Kents e Peter Parkers neste mundo. O mais próximo do legado dos quadrinhos possivelmente é o Tartaruga, por causa da sua história de origem e é um dos únicos que caminha pela via clássica de ter uma identidade secreta e combater o crime. Porém a execução dessa linha é diferente e satisfatória, contudo sai bastante da proposta pé-no-chão do livro, mesmo que bem justificado. Existe também o mito do Jet Boy, um humano comum mas considerado por todos o grande modelo de heroísmo. A maior parte deles atua com o governo americano, que parece ser o grande protagonista do livro. De Reagan e Nixon, passamos pela fase Watchmen de combater os vigilantes e mantê-los sob as asas repressivas do governo ao modelo Marvel-SHIELD de uma unidade secreta de super-seres. A dinâmica social e a opinião pública estão em constantes mudanças de acordo com as intenções políticas de cada governo e a aceitação popular. Além disso, outra parte dos ases se transformam em celebridades, trabalham em Hollywood e se aproveitam de seus poderes de forma bem mesquinha, porém crível. Os restantes preferem manter o anonimato. Essas matizes demonstram a preocupação em mostrar muitas perspectivas sobre a pergunta essencial sob a qual o livro trabalha.

 

Outro elemento que ganha mais destaque até que os super-seres são os curingas, principais motores das mudanças políticas e reflexo incisivo das tensões sociais de uma nação. Eles adicionam um ponto de tensão enquanto unificam um caldeirão de preconceitos – os pobres, os estrangeiros, os homossexuais e os negros – só que com um viés mais espartano por causa das deformidades. Por causa destas, são excluídos e resignam-se a se aglutinar em bairros só para eles (o mais citado na história é em Nova Iorque) e com isso todos os problemas que acompanham: criminalidade, violência, tráfico, entre outros. Exceto um dos personagens que carregam os pontos de vista da história, nenhum outro é exatamente um Curinga e a complexidade dessa situação nunca é satisfatoriamente desenrolada. E complemento com minha grande crítica: não há personagens femininos relevantes e que saiam do estereótipo comum de donzelas em perigo.

 

E agora volto ao meu ponto lá de cima, uma hipótese que carrego sobre o George R.R. Martin: exceto Ruas Estranhas, que ainda não li dele, seus outros trabalhos tateiam no que culminou em Game of Thrones: uma trama complexa de caráter político e social que utiliza elementos fantásticos que funcionam como um verniz diferente naquele quarto que todos amam. Martin cria estruturas culturais de valores, pontos de vista e crenças e as ativa em um contexto político no qual o poder está em jogo, e Wild Cards não foge desse molde. No fundo, ele é o Manoel Carlos que todo nerd sonhou, porque cria folhetins e novelas com elementos que os fãs de fantasia e ficção científica adoram – ponto que pretendo abordar em outro momento.

 

Então, Wild Cards vale a pena? Sim, vale. Os problemas de ritmo e a diferença de qualidade entre os autores atrapalham bastante a leitura, e nem sempre a proposta da obra é atingida, deixando o leitor num universo vago e com uma identidade não completamente formada, mas mesmo assim o livro consegue reproduzir, de forma diferente de Watchmen, o que todo fã de quadrinhos e super-heróis se pergunta: como seria o mundo se super-seres realmente existissem? 

 

Espero que os próximos livros continuem tentando habilmente tentar responder a pergunta. Só não vale blefe de truco 🙂

 

Nerd: Novo Nerd

O projeto e a paixão de uma equipe de Nerds que gosta tanto de suas esquisitices que não consegue se conter. Afie sua espada, prepare seu golpe poderoso, pegue seus power converters e embarque nesta estrada, porque, meus amigos, “it´s gonna be Legen… wait for it… DARY! LEGENDARY!” - SO SAY WE ALL.

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