Eddie Kaspbrak: um ícone gay desde os anos 50?

Atenção: esse post contém spoilers de It – A Coisa em suas três versões: da obra de Stephen King de 1981, da minissérie de 1990 e do filme de 2017.

 Em homenagem a esse Mês do Orgulho LGBTQIA+ e, especialmente, pelo dia do Orgulho Gay ser comemorado no primeiro dia do mês de junho, decidi escrever sobre um personagem que considero ser um dos meus favoritos, Eddie Kaspbrak, e que, desde 1986, é alvo de uma pergunta persistente: Eds é ou não é gay?

Antes de tentar responder a essa pergunta, vamos começar com um resumo rápido das três obras: It – Uma Obra-Prima do Medo, livro de mais de 1.000 páginas publicado em 1986, é narrado em flashbacks entre o verão de 1957 e julho de 1984. Já a minissérie de mesmo nomefoi lançada em 1990 e se passa no verão de 1960 e em 1990, da mesma forma que o livro, em flashbacks. E o primeiro capítulo da adaptação de Muschietti acontece no verão de 1988 e o segundo será ambientado nos dias atuais. O cenário principal das três obras é a pequena cidade de Derry, no Maine, e tem como personagens principais aqueles que no livro conhecemos como Lucky 7: “Stuterring” Bill Denbrough (Bill Gago), Beverly Marsh, Ben Hanscom, Mike Hanlon, Stan Uris, Richie “Trashmouth” Tozier e Eddie Kaspbrak. Nas três versões, temos uma cidade e suas crianças sendo aterrorizadas e brutalmente mortas por um palhaço desgraçado, sendo que as mortes são iniciadas com o irmão mais novo de Big Bill, Georgie Denbrough, assassinado por Pennywise de modo grotesco. Tomemos o livro como ponto principal de todo esse texto.

Já quero levantar o questionamento que muitos devem fazer: mas se It é uma ficção de horror, por que um personagem ser ou não gay é relevante? Quem conhece King sabe que o que mais importa em sua escrita não é o final da história, os monstros ou as mortes. Elas têm, sim, seu valor, mas o primordial é, e sempre será, os personagens, suas histórias, suas trajetórias, seus medos, seus pecados, suas fraquezas, suas humanidades. Tornar seus personagens mais reais faz com que nós, leitores, nos identifiquemos com eles e vejamos a história de seus olhos. Mas a palavra-chave aqui é identificação. Temos sete personagens principais, com exceção de Pennywise e de Henry Bowers, todos com personalidades, pensamentos e medos diferentes. Posso me identificar mais com um personagem, enquanto outro leitor se espelhará mais em outro. Eddie Kaspbrak ser gay, principalmente no ano de 1957, é muito importante para a trama e para sua evolução. King criou um personagem com um forte estereótipo homossexual, não à toa, sem poder dizer abertamente se ele é de fato gay, por mais que o livro tenha sido publicado em 1986. Não que houvesse menos preconceito na época de lançamento da obra, mas principalmente pelo ano que a primeira parte da história se desenrola e pela idade de Eddie. Além disso, muitos acontecimentos no decorrer das páginas apontam para a sua orientação sexual de forma implícita – e explícita. Mas, ainda assim, por que Eddie ser ou não gay é um assunto ainda muito discutido? O Rei do Horror não tem esse título por acaso, ele é um dos maiores nomes – senão o maior – da literatura de terror atual, principalmente de terror psicológico. Ele não escreve nada sem pensar muito antes, sem contexto e subtexto. Diferentemente de muitos de seus livros, Pennywise logo faz seu debut, mas, normalmente, Stephen King trabalha com os personagens, fazendo com que saibamos de seus erros no passado, seus hábitos, seus pensamentos e até mesmo detalhes que parecem insignificantes, mas que acabam fazendo com que criemos certa proximidade com eles. Sabendo que Eddie tinha medo de sua sexualidade, entendemos certas cenas nas três obras que dão dicas sobre ela, mesmo sem estar ali abertamente.

Vamos por partes. Comecemos com a aparência de Eds. Como disse, ele foi escrito de forma estereotipada: aparência frágil, pequeno, delicado, até mesmo feminino, como todas as personagens abertamente homossexuais de King. A interpretação de Adam Faraizi (Eddie jovem) e Dennis Christopher (Eddie adulto) na minissérie se mantem fiéis a isso, já Jack Dylan Grazer em 2017 aparece um pouco menos preso a esses rótulos, porém, em todas as versões, os antagonistas – tanto a gangue de Bowers quando o próprio palhaço infernal – o chamam de vários nomes pejorativos o tempo todo, humilhando-o e expondo suas inseguranças. Esse bullying, sempre bom lembrar, também vem de dentro de casa, sendo que sua mãe, Sonia Kaspbrak, o chama de “um menino frágil” ou “delicado”. Mas isso não quer dizer nada exatamente. O segundo ponto a ser levantado é a relação de Eddie com outro homem apresentado logo no começo do livro e, mesmo com uma aparição breve, é impactante, Adrian Mellon. Morto por Pennywise, em 1984, Mellon é um homem gay em um relacionamento, morando na homofóbica cidade de Derry, aparência frágil e com um caso grave de asma. Até mesmo Eddie surpreende-se com as suas semelhanças, agarrando sua bombinha com espanto ao ouvir Mike Hanlon contar que Mellon foi uma das primeiras vítimas atuais de A Coisa. Lembrando: Stephen King não escreve nada ao acaso.

O livro e o filme de Muschietti apresentam o primeiro encontro de Eddie e Pennywise no mesmo lugar, mas de formas diferentes: a casa da Rua Neilbolt. Na obra, os acontecimentos são mais NSFW, enquanto no longa, o subtexto é a chave. Eddie Kaspbrak de 1957 tem horror à sujeira de toda e qualquer forma e a doenças, e ao saber sobre a AIDS, fica especialmente aterrorizado. Ao passar pela casa da Rua Neilbolt certa vez, com todo seu nojo por aquele lugar e a esses pensamentos horríveis, depara-se com um leproso vindo em sua direção, oferecendo um bolagato para um menino de 11 anos! Essa cena demonstra seus dois maiores medos de uma vez: de doenças e de sua sexualidade. Já no filme de 2017, a formação das bexigas expressa implicitamente o que o texto tenta expor com mais facilidade. Quando Eddie se vira e depara-se com Pennywise, o palhaço está segurando seus balões de forma bastante peculiar: eles formam um triângulo (vermelho, meio cor-de-rosa) de ponta cabeça. Esse símbolo era utilizado em centros de concentração nazistas para identificar as pessoas presas por serem homossexuais e é utilizado até hoje como um dos símbolos da cultura gay. Na minissérie, esse primeiro encontro acontece de forma diferente: Eddie, após uma aula de educação física, tenta ir embora sem tomar banho, mas é repreendido por seu professor, que o faz voltar e banhar-se, mas sem os colegas por perto. No chuveiro, depara-se com Pennywise surgindo de dentro de um ralo e, mais uma vez, fazendo comentários sobre sua sexualidade.

Sempre tem alguém que diz que uma das maiores provas de que Eddie não é gay é que, no livro, ele se casou. Sim, Eds se casou com uma mulher obesa, grande tanto em altura, quanto em largura, assustadoramente parecida com sua mãe (que faleceu pouco antes de ele decidir se casar), chamada Myra. Mas, sejamos sensatos e sinceros: uma das coisas mais comuns que pessoas homossexuais que ainda estão no armário fazem, seja por medo da represália que sofrerão pela sociedade ou em sua família, seja por não se aceitarem como são, é casar-se com alguém do gênero oposto, tentando provar para o mundo e para si mesmas que não são gays. Eddie Kaspbrak casa-se com Myra exatamente por esse motivo. Além disso, após a morte de sua mãe, vê Sonia espelhada na mulher e, ao esquecer-se, após “derrotarem” Pennywise e sair de Derry, de como é amor de verdade, de pessoas que se importam com ele sem serem manipuladoras e calculistas, acredita que o amor de sua mãe é amor de verdade, o único que pode existir, e, ao encontrar isso em outra mulher, sente que deve tê-la ao seu lado. Mas mesmo Eddie percebe, ao começar a recordar do passado após a ligação de Mike, que aquilo não é amor e que só fez aquilo por comodidade e familiaridade. Não raro, mesmo antes do telefonema, ele sonha em deixá-la para trás, deixar tudo para trás, e viver a vida como quer de verdade. E, mesmo antes de casar-se com Myra, Eddie admite ter tido pouquíssima – ou talvez nenhuma – experiência com mulheres antes dela. O ponto que muitos usam como resposta para Eddie não ser gay é o mais indicador de que ele o é.

Por fim, as inúmeras cenas de interação entre Eddie e Richie, que não quero me estender aqui, mas farei um resumo. Como dito e dito novamente em todo o decorrer desse texto, Stephen King não escreve nada sem contexto. Não é a toa que ele escreve Richie atazanando Eddie durante toda a infância e mesmo depois que se encontram quando adultos. Sim, essa é a personalidade do Trashmouth, mas como uma criança normalmente pode demonstrar que gosta de outra? Não vejo jeito melhor do que infernizando, exatamente como Richie faz com Eddie. Sem contar os apelidos (por vezes Richie chama Eddie de “meu amor” no livro), as interações, o quanto Richie mostra se importar e se preocupar com Eddie nas três versões, e até mesmo na cena final do livro. Eddie quis dizer algo a Richie antes de morrer e todos nós devemos imaginar o que era. Richie fica possesso, muito mais do que os outros, com a morte de Eddie, mesmo o asmático não sendo seu melhor amigo, e fica arrasado em ter que deixar seu corpo no esgoto. Na minissérie, Richie faz questão de levar o corpo consigo e, no final, passa a trabalhar com um homem que é muito parecido com Eddie. No final do capítulo um da nova adaptação, há aquela cena mostrando Eddie e Richie durante o pacto, de mãos dadas, com o enquadramento perfeito no gesso escrito LOVER. Muschietti, assim como King, não faz nada por acaso, e tem muitas cenas de seu filme que são muito Reddie. Os subtextos estão todos aí, basta lê-los corretamente. Sem contar que, em um roteiro anterior ao de Muschietti, Richie foi colocado explicitamente como gay e o interesse amoroso dos dois personagens era muito mais visível. Mas deixamos o assunto Reddie para outra hora.

Aqui, tentei ser bem sucinta nos pontos que provam, sim, que Eddie Kaspbrak é gay. Se você parar e ler o livro atentamente, assistir às adaptações sabendo para onde olhar, é possível ver as evidências. A pergunta que fica de verdade é: por que, em pleno 2018, com It fazendo sucesso mais uma vez, King não confirma ou nega essa especulação de 32 anos? Imagino que a resposta seja: qual a graça? Afinal, a discussão é a parte divertida, e ele já colocou todas as pistas aí. A resposta está no livro, na minissérie e no filme, é só sabermos ler nas entrelinhas.

Nerd: Nathalia Lossolli

Share This Post On