Sexta-feira
São 20h de uma sexta-feira fria e a sombra escura da noite penetrando por entre os prédios de São Paulo. Ainda se vê movimento e luzes acesas em um dos prédios, enquanto nas esquinas muitas pessoas terminaram suas batalhas e confraternizam com colegas e garrafas de cerveja. É possível ver mesas sendo carregadas, equipamentos de filmagem, e alguns outros materiais.
Às 21h o pequeno grupo que ainda se encontra no prédio com luzes acesas, é surpreendido por diversos outros grupos, com diferentes sotaques, mas com a mesma empolgação. Enquanto nas esquinas o que se vê são batalhas concluídas, neste grupo o que se vê é a ansiedade e a alegria que motivarão as batalhas que ocorrerão nos próximos dois dias. Enquanto a cidade dorme, eles estarão desafiando a si próprios.
Sábado
São 07h de um sábado nublado. Novamente os grupos com diferentes sotaques começam a chegar de volta ao prédio. Mesmo calados, é possível saber com uma ligeira precisão de onde cada um vem, basta olhar para as roupas que estão usando – se muitos casacos, sabemos que vêm de locais normalmente quentes como nordeste e norte, camisetas de mangas mais curtas com certeza vêm do sul. Aos poucos as vozes começam a tomar conta do local antes silencioso, e as mesas antes inúteis, se despedem de sua insignificância e se transformam em verdadeiros campos de batalha.
É possível notar que os guerreiros, mesmo ansiosos com a iminência da batalha, baixam suas armas para cumprimentar os demais. Muitos deles já se enfrentaram antes, muitos já se encontraram, e a grande maioria se conhece por outras dimensões não físicas.
Já são 07h50, todos correm para ocupar seus espaços destinados, aprontar seus exércitos e dar uma última respirada. Às 07h55 todos estão em seus lugares e um homem, que parece o mais sábio do local, se coloca no meio de todos e profere as seguintes palavras: “declaro iniciadas as batalhas deste sábado”.
Ao invés de ouvirmos gritos e provocações naturais a qualquer batalha, silêncio. Concentração. São ao todo 50 batalhas ocorrendo simultaneamente, e é possível ouvir a respiração dos combatentes. Algumas testas reluzem, com o suor escorrendo enquanto pensam na melhor estratégia. O desafio de cada um deles, não é ser melhor do que o oponente, é ser melhor do que eles próprios.
São agora 10h30, o céu nublado dá lugar a uma nesga de sol e é possível ouvir pássaros cantando timidamente. Alguns guerreiros sentem dores, se sentam. É possível ouvir respirações mais aceleradas, muito provavelmente acompanhando o aumento do ritmo cardíaco. Alguns guerreiros secam as mãos suadas, nada pode atrapalhar a batalha.
11h, muitos deles já deixaram o campo e agora apreciam seus adversários, torcem discretamente, e até mesmo confraternizam com seus próprios algozes. Neste grupo não se nota mais nenhuma tensão, um pouco de tristeza talvez, mas o sentimento de irmandade e fraternidade ainda chama mais atenção. Os mais abalados são consolados e abraçados pelos demais, e aos poucos recobram a força e a empolgação de horas atrás.
Às 13h30 o mesmo homem sábio de antes se põe entre os campos e diz: “declaro finalizadas as batalhas desta manhã. Nos vemos novamente às 14h30”. Todos se cumprimentam e saem juntos em direção à rua.
Agora o silêncio dá lugar a inúmeras vozes alegres, assuntos diversos, e é possível sentir a energia divertida e acolhedora emanando de todos os cantos.
14h30. Os guerreiros que permanecem no páreo se posicionam em seus campos, novamente organizam seus exércitos, e o homem novamente dá início a mais uma série de batalhas.
São menos campos, mas a tensão é ainda maior com menos guerreiros duelando. O sol agora ilumina todo o salão, e aqueles que já foram eliminados se posicionam para agora, como plateia, apreciar.
Após algumas horas, restam menos de 20 guerreiros. O sol já não brilha mais, e a escuridão da noite toma conta do salão. Todos estão muito apreensivos para descobrir quem serão os 16 guerreiros que triunfarão nessa noite.
São 23h00, muitos já se recolheram ou saíram para explorar a cidade. Os que permanecem já demonstram sinais visíveis de cansaço, alguns parecem que estão a ponto de jogar a toalha, mas não o fazem. Precisam superar suas próprias mentes, e sabem que devem aproveitar ao máximo a oportunidade de duelar contra os melhores guerreiros do país.
00h00, e agora restam apenas aqueles 16 guerreiros que todos ansiavam conhecer. O homem sábio aparece novamente, desta vez para cumprimenta-los e finalizar a tarde de batalhas. Cansados, exaustos, todos deixam o salão juntos, agora mais leves e ainda mais unidos. Vencedores e derrotados rumam em todas as direções, alguns procuram lugares para extravasar, confraternizar, outros preferem descansar. Mas todos seguem felizes e animados, como se estivessem completamente realizados naquele momento.
Domingo
São 08h15, e há alguns minutos os 16 guerreiros vitoriosos retornaram para os campos de batalha e já duelam. Nem todos os demais estão no salão. Alguns ainda dormem, se recuperando das batalhas do dia anterior, outros se espalharam pela cidade, contemplando-a com novos sotaques e visões. Mesmo assim, se nota a maioria deles reunida em volta dos 16 guerreiros, observando.
Às 10h00 restam apenas 8. Alguns guerreiros, que bravamente lutaram até o final com a mesma garra do início, não se conformam. Ficam nervosos, não se controlam, outros seguram o choro. Sempre consolados pelo grupo.
Muitas batalhas ocorrem até às 13h00. Agora, restam apenas 2! Silêncio total, respirações lentas e quase inaudíveis. O homem sábio declara: “A partir de agora iremos descobrir quem será vitorioso neste último duelo”.
Neste momento há apenas 1 campo de batalha, e 2 guerreiros duelando. Os outros 100 se espremem por entre as paredes do salão para assistir, com certa admiração no olhar. Os que estão na plateia roem as unhas, esfregam as mãos, sussurram estratégias na esperança de que os guerreiros possam ouvi-los. Em vão.
No campo de batalha a concentração é máxima e total, como se para aqueles dois guerreiros não existisse plateia, salão, adversário. Nada! Apenas eles e seu exército à frente, em um vazio momentâneo.
Faltando 15 minutos para o fim, já é possível imaginar o resultado. Os guerreiros já sabem, mas continuam na disputa, sem desistir nem se entregar.
O último homem cai. Tem-se um vencedor.
O silêncio é substituído por aplausos. A respiração travada, agora flui livremente. O suor cessa, e a expressão nos olhares é de realização. O homem sábio se coloca no meio de todos e declara o vencedor, que é cumprimentado por todos os adversários. Pelas próximas horas grande parte deles permanece no salão, agora em clima de comemoração e confraternização.
Todos trocam experiências, assuntos dos mais diversos surgem, como família, viagens, e muitos convites.
O que o vencedor ganhou? Dinheiro? Um prêmio de alto custo? Nada disso, ele na verdade ganhou algo muito mais valioso. Sim, ele está voltando para casa com alguns prêmios materiais na bagagem, mas insignificantes perto dos prêmios reais. Não apenas o vencedor, mas todos os guerreiros estão voltando com a bagagem recheada de novas amizades, novas experiências e, principalmente, estão voltando outras pessoas. Eles sabem que aprenderam muito com as experiências de vida e diferentes culturas de seus oponentes. Sabem que após batalhas tão intensas, conheceram ainda melhor essas pessoas.
E principalmente, sabem que alcançaram seu objetivo, que não era ganhar de todos os outros e ser o melhor, mas ganhar deles mesmos.
Eles estão voltando para casa sabendo que agora são melhores do que eram antes de sexta-feira.
* este texto é uma crônica narrativa sobre como é participar de um torneio de boardgame, para que você possa conhecer e entender o ponto de vista de jogadores competitivos, que viajam o país disputando campeonatos.
