Bafo de Nietzsche

É Copa do Mundo, senhoras e senhores, e eu entendo menos de futebol do que o Jon Snow de alguma coisa, então dane-se a oportunidade e abordarei um tema que elucubro há um tempo.

Games são arte?

Pra quem faz parte desse poderoso programa de controle de natalidade dos Illuminatis, já houve um momento crítico de dúvida e reflexão sobre o tema. Pode acontecer naquele momento que sua mãe aparece na sala, lá na adolescência, e pergunta o que raios você está fazendo com o seu tempo. E parte dessa crítica se deve ao status pejorativo que os jogos tinham até os anos 90: de lixo a passatempo perigoso.

Mas quando uma manifestação ou expressão humana recebe o rótulo de arte, tudo muda. Arte pode. Se comer Nutella um dia virar arte, dá pra aguentar a diabetes porque todo mundo vai te respeitar. Imagine um casal de pais, por exemplo, que encontre seu filho no quarto admirando um Debret ou Gauguin. A reação, depois do espanto, será louvor.

Mas com ou sem aprovação de arte, os games cresceram e ganharam outro rótulo tão importante quanto para ganhar respeito: mercado bilionário. Nessa esteira a ciência acorda para os diversos potenciais educacionais, interativos e informativos das plataformas virtuais. Mesmo que no fundo todos busquem a diversão como principal consequência cognitiva de jogar.

Para entender como games se encaixam nesse universo, a questão sobre arte nos leva a duas perguntas:

1. O que é arte?

2. Quem tem o cajado mágico para transformar games em arte?

Segundo um certo alemão, “We have art so that we may not perish by the truth.”(“Nós temos arte para que não pereçamos pela verdade”, Nietzsche).

A primeira pergunta é uma das maiores armadilhas teóricas já criadas pela humanidade depois do Gato de Schrodinger. Todo grande pensador e artista e crítico já propuseram sua visão de arte. Gosto da linha cultural e antropológica, que define arte como toda e qualquer forma de expressão humana. Os críticos radicais tradicionais fecham esse arco na consequência da observação: é toda obra que promova novas sensações e reflexões disruptivas ao observador. O clássico “cara de conteúdo”. E nesse sentido, existe arte boa e arte ruim (como agora virou moda a zuera com Romero Britto), o eterno Funk vs Ópera.

Não estou aqui para defender um ponto de vista, por quê honestamente não sei se tenho um e me divirto muito mais com a discussão. Mas seguindo a linha da “arte precisa causar alguma reação advinda da expressão da individualidade do artista”, porque é tão difícil encaixar os games nela? Por que como c*, cada um tem sua visão de arte, e quem tem mais credibilidade e poder faz prevalecer a sua (Se puderem, leiam Pierre Bourdieu que explica muito bem esse contexto).

Toda essa enrolação pseudo-intelectual que não me ajuda nem a pegar cachorro de rua para dar lugar num pedestal frágil um jogo que, creio eu, fica bem próximo do rótulo convencional de arte: Breath of Fire.

Lançado em 1993, pela Capcom (a mesma de Mega Man e Street Fighter) no Super Ness, é um tradicional RPG como Final Fantasy, Dragon Quest e correlatos. Houveram cinco iterações ao longo dos anos. A história de todos tem uma essência parecida: Ryu, um dos últimos membros de uma raça poderosa de humanos que se transformam em dragões, precisa viajar o mundo com seus companheiros para derrotar alguém que ameaça a paz na terra ou insiste em ideias erradas. Esse alguém geralmente é Deus.

O universo dos jogos de console até a metade da década de 90 nunca apresentou enredos complexos ou temas pesados. Como boa parte dos filmes de ação dos anos 80, a missão ou era salvar a donzela em perigo (mecanismo que infelizmente resiste até hoje) e/ou derrotar o grande vilão que quer destruir o universo por puro tédio. Essa série tocou em um tema pesado que remonta ao filósofo alemão bigodudo pop: religião é um problema, e Deus não existe (ou, no caso da narrativa de BoF, quer mais é te ferrar).

Esse tema ganhou escopo e peso a partir do II (1994) em diante, que mergulhou como nenhum outro jogo até então na crítica religiosa e questionamento da divindade. Eu, como boa parte das crianças brasileiras, cresci em um lar muito religioso, e não foi nem Nietzsche, Sartre, Godard, William Blake  ou Silvio Santos que plantaram um dos mais problemáticos questionamentos na minha cabeça. Foi um jogo. Até hoje lembro do impacto e da sensação ao descobrir que o grande “vilão” era a deusa da criação, bem intencionada mas completamente insana.

O quarto, meu preferido, tem uma linda visão sobre o que é exatamente ser uma divindade, e te coloca no papel de uma. Só não dou detalhes porque vale a pena jogar. E existem muitos outros motivos  que tornam essa série tão fascinante (eu falei que tem gente que se transforma em Dragão né?), porém é muito mais bacana se vocês descobrirem. Arte deve ser uma jornada pessoal enquanto vislumbrada.

Isso justifica jogos como arte? Improvável. E  instituições renomadas como Smithsonian ou Louvre ainda não bateram o martelo, e sempre vai incomodar que a missão de qualquer jogo é mais atrelada a diversão do que à produção de cara de conteúdo. Mas não nega a importância da formação intelectual e reflexiva na vida de alguém como foi na minha, independente se você sai da experiência acreditando mais ou menos, essa não é a questão central.

O que continua fascinante mesmo é: um jogo só é possível pela somatória de diversas artes, como literatura, música, design e outras que variam por gênero e necessidade. Ao mesmo tempo, a arte tradicional (cof-européia-cof) está muito ligada à expressão individual, ao trabalho técnico árduo de uma pessoa com “talento” excepcional. Mesmo grandes filmes cults são sempre creditados a um diretor ou roteirista com QI acima de 9000, e se esquece toda uma equipe que contribuiu para o filme. E exceto no caso do desenvolvimento independente, hoje games necessitam de equipes muitas vezes maiores do que as de Hollywood.

Se é arte ou não, não sei. Mas se algo mexe tão profundamente com você e como consequência altera ou modifica, mesmo que por instantes, o que você considera como realidade ou verdade, ou se apenas causa exultamento estético, pra mim pouco importa se é blockbuster, cinema europeu ou jogo. Refinamento e gostos artísticos são muito influenciados por regras sociais, mas essa discussão fica para outro post.

Na verdade, eu só queria uma desculpa para falar dessa excelente série. Não troco Breath of Fire por nenhum Picasso.

Nerd: Novo Nerd

O projeto e a paixão de uma equipe de Nerds que gosta tanto de suas esquisitices que não consegue se conter. Afie sua espada, prepare seu golpe poderoso, pegue seus power converters e embarque nesta estrada, porque, meus amigos, “it´s gonna be Legen… wait for it… DARY! LEGENDARY!” - SO SAY WE ALL.

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